terça-feira, 17 de novembro de 2009

Encontraram uma jovem morta

Acharam uma jovem morta
enforcou-se à noite, sob a luz lunar
ao som de Mozart.
Quando encontraram-na
dolorosas notas de piano
faziam pensar na solidão
e numa sala escura num dia de chuva.
Em seu bolso, três papéis:
um poema de Florbela Espanca
um bilhete suicida
e uma carta de amor
que nunca chegou a enviar.

Flávio Soares

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Uma noite sem álcool

1 hora da manhã
a cerveja acabou
e todos os bares estão fechados
tudo que tenho é um cigarro
que fumo, pesaroso
ouvindo a voz de Renato Russo
sair, triste, do rádio.

A inquietude me sugere alguns versos.

Vez ou outra um carro passa
roncando, estrondoso
ou uma coruja pia em seu voar
e nada mais.

É tão perturbante
uma noite sem álcool.

Flávio Soares

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Era uma vez histórias

"Era uma vez"
pousava o timbre calmo de minha mãe
em meus ouvidos.
Eu adormecia antes do final.

Todas as noites, a mesma coisa
"Era uma vez", e eu dormia
sem ouvir o fim da história.

De manhã, ao acordar
sem saber do desfecho
eu inventava um
mamãe mal sabia
que ali nascia meu calvário.

Era uma vez um menino
que começou a inventar histórias
e depois disso
nunca mais dormiu.

Flávio Soares

sábado, 3 de outubro de 2009

A vida segue a mesma, insuportável

2001:
o corinthians era campeão paulista
Bin laden derrubava o World Trade Center
a Argentina atravessava uma crise
o Brasil estava no escuro
eu me embriagava todo dia
e numa rua qualquer
meu pai tombava
fechando seus olhos para sempre.

Flávio Soares

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Uma dor de cabeça


As aflições estavam piores a cada dia. O médico lhe disse que era por causa da sinusite, uma inflamação na mucosa que causa dores agudas na altura da testa e, em alguns casos, podia atingir o cérebro, afetando o estado psicológico de quem a tem. Isto explicava as perturbações mentais que vinha sofrendo e seu nariz constantemente escorrendo.

Sentado à mesa com dois amigos, Gilberto e Felipe, Murilo se embriagava. Qualquer garrafa de vinho ou cerveja é mais barata que os antibióticos receitados pelo doutor. Por isso, mesmo sabendo que no dia seguinte as terríveis pontadas na cabeça seriam mais dolorosas, ele bebia.

—Porra, Murilo! Pare de passar essa faca na mesa, cara. Está me irritando. —falou Gilberto.


—Ele parece estranho hoje. — observou Felipe.


Eles não sabiam do problema dele.

Com a mente preocupada pela doença, o rapaz continuou a manusear a faca, diante dos olhares curiosos dos outros dois. Seu nariz escorria, mas ele não o assoava. Não se importava mais com isso.

—Cara, que nojo! Por que você não limpa isso? — perguntou um deles.

Murilo não respondeu. Desde que chegara ali, não havia falado nada. Estava quieto, em estado de reflexão profunda.

—Vou buscar mais cerveja. — disse Felipe, se levantando.

De repente, um berro e o barulho de alguém tombando. Felipe que voltava com uma garrafa em cada mão cruzou com Murilo. “Aonde vai?”, perguntou. Nenhuma resposta. Quando chegou ao local onde bebiam encontrou Gilberto caído no chão, esfaqueado.

Flávio Soares

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Minha mão no teu corpo

Minha mão percorre teu corpo
descontrolada, louca
como quem passeia no Éden
desliza sobre tua forma escultural
e a cada curva que passa, para
encantada
abrasada
extasiada.

Ah! Que furor a envolve
minando lava de seus poros
e ela, desvairada
perde-se de si mesma
no prazer inefável
de tocar tua carne.

Flávio Soares

domingo, 16 de agosto de 2009

Um final melancólico

Recordo quando tu me perguntava
por qual razão me embriagava tanto
não parecia, mas eu derramava
internamente doloroso pranto.
"A vida é triste", era o que te falava
tu me acalmava com suave encanto
por um momento a morbidez cessava
pra me cobrir mais tarde com seu manto.


Ah! Quantos choques sofremos na vida
por não podermos prever o futuro
jamais sonhei com lúgubre partida
logo você, de pensamento puro
toda vez que me achava alcoolizado
a reclamar de uma existência vã
detestava me ver naquele estado
porém bebeu em péssima manhã
um cálice de vinho envenenado.

Flávio Soares

sábado, 25 de julho de 2009

Coveiro

Em silêncio
ele sorri por dentro
agradecendo
pelo seu pão de cada dia
enquanto todos choram
vendo o caixão descer.

Flávio Soares

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Um homem muito dramático

Charles Bukowski
Vellors sempre escondia uma faca nos arbustos
quando se preparava para brigar
então se o cara o derrubasse
ele recorria ao aço.
Ele pegou um cara semana passada,
esfaqueou-o na perna,
o cara gemeu,
"Ai meu Deus, você cortou minha perna..."
e Vellors colocou a faca contra sua garganta
e disse, "Vou arrancar tua cabeça!"
então a namorada de Vellors passou em seu carro, parou
e gritou,
"Não faça isso, Vellors, eu te imploro, eu te imploro,
não o mate!"
"Vou arrancar a cabeça dele!" gritou Vellors.
"Vellors, Vellors! Não faça isso, fuja antes
que a polícia chegue! A polícia está a caminho!"
Vellors levantou-se e fugiu por um beco.
Eu o vi há alguns dias.
"Coisa boa", disse ele, "Minha namorada me deteve
senão eu arrancaria a cabeça dele, hehehehehe..."
Vellors gostava desse tipo de coisa.
Ele era muito dramático.
Alguma dia ele vai fazer besteira
se já não fez. Enquanto isso, somos
bons amigos.

Tradução de Flávio Soares

A very dramatic man

Vellors always hid the knife in the bushes
when he got ready to fight
then if the guy started duke him down
he'd go for the steel.
He had this guy down last week,
stuck him in the leg,
the guy was moaning,
"Oh my god, you've stuck me in the leg..."
and Vellors had the knife across his throat
and he said, "I'm gonna chop your head off"
then Vellors' girlfriend drove past in her car, stopped
and screamed,
"Don't do it, Vellors, I beg you, I beg you, don't kill that man!"
"I'm gonna chop his head off!" screamed Vellors.
"Vellors, Vellors! Don't do it, and get away before
the police get here! The police are coming!"
Vellors got up anda ran down an alley.
I saw him a couple of days ago.
"Good thing", he said, "My girlfriend stopped me
or I would chop his head off, hehehehehe..."
Vellors liked that sort of thing.
He was very dramatic.
Some day he is going to do it
if he hasn't already done it. Meanwhile, we are
good friends.

Charles Bukowski

terça-feira, 7 de julho de 2009

O segredo da vida

Passávamos nossas noites de sábado bebendo num bar. Eu com cerveja, ela com vinho. Enquanto aplacávamos nosso vício pelo álcool, discutíamos vários assuntos filosóficos, coisas de bêbado. Ela sempre colocava na jukebox "Canto para minha morte". Era sua canção favorita. Dizia sentir um êxtase ao ouvi-la.


Uma noite, a garota não apareceu. Em dois anos, era a primeira vez que não ia a meu encontro. A princípio, pensei em ligar, mas depois resolvi esperar alguns minutos. Pedi uma garrafa de cerveja e me sentei no nosso local preferido do bar, o canto. Após três garrafas, meu celular toca. Ouvi Raul Seixas a todo volume vindo do outro lado da linha.


- Você acredita em reencarnação? - reconheci a voz dela.


- Não.


- Eu acredito...


Em seu quarto, nua e estirada sobre a cama, ela se matava, sorvendo vinho envenenado, enquanto Raulzito cantava "Morte, morte, morte que talvez... Seja o segredo dessa vida". Seu corpo só seria encontrado no dia seguinte.


Creio que ouvi seu último suspiro pelo telefone. Embriagado e triste, coloquei sua canção predileta na jukebox durante a noite inteira.

Flávio Soares


quinta-feira, 2 de julho de 2009

segunda-feira, 29 de junho de 2009

sexta-feira, 12 de junho de 2009

É necessário ter SOMA

"A felicidade está
em aceitar a vida como ela é"
Aldous Huxley



Na parede do banheiro
um infeliz escreveu:
"A vida é uma merda".

O jornal que leio
diz a mesma coisa
com outras palavras
suas páginas
são dignas de uso.

Ouço o choro de um homem
que está na cabine à direita
da cabine à esquerda
escorre sangue por baixo da porta.
Alguém cortou os pulsos?

Há uma garrafa de vodka
e uma bíblia no cesto de lixo...


Flávio Soares

sexta-feira, 5 de junho de 2009

terça-feira, 26 de maio de 2009

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Opção de vida


Eles moravam em um vistoso sobrado no final da rua. Quem passava por lá dificilmente não se detinha por alguns minutos a contemplar essa residência, tamanha era sua beleza. Lembro-me que aos domingos, um senhor, proprietário dessa casa, lavava seu luxuoso carro na calçada. Passava horas encerando o automóvel que, propositadamente, ele deixava com o rádio ligado no volume máximo, para atrair a atenção da vizinhança.


Sua esposa, bonita e refinada, era uma mulher esbanjadora. Gostava de se exibir com roupas e joias caríssimas. Ela se deliciava ao ver os olhos invejosos das fofoqueiras que se juntavam na praça para debater sobre a vida alheia.


Os dois, um símbolo perfeito da classe média que quer sempre ascender, pareciam ter sido feitos um para o outro. Consumistas sem igual no mundo, desfilavam pelo bairro como um casal monarca dos séculos passados. Em qualquer ocasião, faziam questão de ostentar seu sobrenome italiano. Julgavam-no respeitoso, tanto que nem me lembro se era Benedetti ou Bernadette. Mas havia o filho... Ah! O filho... Esse desde criança dava mostras de que tinha algo errado em seu juízo ou, pelo menos, uma mente diferente. Seus pais lhe davam tudo o que queria. Brinquedos. Roupas. Passeios em lugares que qualquer criança, independente da classe social, desejaria ir. Ele não gostava de nada. Era estranho o desprezo que tinha pelos agrados que recebia.


Todo mundo no bairro, inclusive eu – confesso envergonhado – invejava aquela família. Tínhamos a idéia ilusória de que dinheiro traz felicidade. Isso até me faz lembrar de um ditado popular: “A grama do vizinho é sempre mais verde”.


Com o tempo, a cabeça do garoto cujo nome não me lembro, porque sua família só se apresentava como Benedetti ou Bernadette, seja lá como for, piorou. O menino ganhou um semblante melancólico, que todos percebiam exceto os pais. A tristeza sem razão passou a fazer parte de sua vida. Um dia, saiu de casa e nunca mais voltou. A princípio, o casal mostrou-se preocupado. A polícia foi acionada. Fotos do filho foram espalhadas pela cidade. Alguns vizinhos se ofereceram para ajudar a procurá-lo. Tudo em vão.


No primeiro ano, as buscas foram incessantes, porém, sem sucesso. E a cada dia, a esperança de encontrá-lo se distanciava. Alguns anos depois, ninguém mais falava nele. O casal seguia sua vida em paz.


* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Décadas depois, numa tarde de dezembro, voltando do trabalho, eu andava pela cidade, sob um sol escaldante. Parei numa praça para descansar. Havia uma multidão em volta de um banco onde um mendigo, sentado, tocava músicas natalinas com uma gaita. Aproximei-me querendo ouvir melhor a melodia que parecia ser tocada por um anjo devido à emoção com que o homem soprava o instrumento. Ao término de seu repertório, as pessoas encheram a caneca dele de moedas e saíram. Quando a turba se afastou reparei no sujeito. Não pude deixar de notar suas roupas estropiadas e a longa barba. E qual não foi o meu susto, ao olhar em seus olhos. Apesar de sua aparência descuidada, reconheci-o. Involuntariamente, deixei escapar:


- Benedetti... Quero dizer Bernadette...


Olhou-me, indiferente. Saiu andando. Tenho certeza que era ele, parecia feliz daquele jeito, não possuía mais a expressão soturna dos tempos antecedentes a sua fuga.

Flávio Soares

terça-feira, 12 de maio de 2009

Poesia não presta pra nada, é uma maldição

Bebeu do néctar da poesia
sem saber que esse estava envenenado
como quem foi mordido por vampiro
agora está pra sempre condenado.

Flávio Soares

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Contrastante São Paulo

Sob a garoa cortante

mendigos e cães, abraçados

tremem na escadaria da Sé

eles assistem ao desfile

dos que passam com indiferença

aquecidos em paletós

praguejando

num dia frio

da contrastante São Paulo.



Flávio Soares

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Um poema em mente

Por cinco segundos
nossos olhares se cruzaram
depois nunca mais a vi.
Passei vários dias
pensando em um poema.

Flávio Soares

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Elegia a Antônio

Com regozijo
me lembro de Antônio
que estava sempre feliz
sorrindo em qualquer circunstância
a vida lhe parecia tão mansa
era um Pangloss...

Todos os momentos ao seu lado
à mesa de um bar
num banco de praça a prosear
ou caminhando pela cidade
eram estranhos
me causava despeito estar próximo a ele
eu me perguntava
como alguem podia ser
constantemente alegre.
Ah! Como eu o invejava...

Durante muito tempo
evitei minha memória
pra não sentir falta de nada
porque a saudade é lúgubre
mas eu não sabia
que a felicidade se encontra
na tristeza da nostalgia
pois só sentimos falta
do que nos foi bom,
então penso em Antônio
que nunca ficou triste
pra conhecer sua felicidade.

Flávio Soares

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Uma luta interior

Numa manhã ele acordou
mandando todos calarem a boca
mas o restante da família ainda dormia.
Uma semana depois
a casa estava repleta de crucifixos
e imagens de todos os tipos de santos
às vezes eu o via
paralisado no corredor
olhando aterrorizado para sei-lá-o-que
"Cuidado" dizia ele "Eles estão à espreita"
Quem eram Eles?
Tamanho era seu medo
que ninguém ousava dizer
que não os via tampouco os ouvia.

Pobre papai, ele realmente achava
que estavam a vigiá-lo
e assim, passava noites e noites de insônia
relendo trechos da bíblia.
Com o tempo, parou de falar
porque Eles o espionavam
ouviam nossa conversa
"Eles não vão me pegar" eram suas únicas palavras
que repetia
como se fosse uma reza protetora.

II
Havia uma paisagem triste em seus olhos
era o prenúncio do fim
Eles estavam em toda parte
era impossível fugir
papai sorvia álcool
como se adquirisse poder a cada gole
Eles se reproduziam com velocidade
estavam prestes a dominar o mundo
riam do medo de meu pai
que não apagava as luzes
mesmo durante o dia
e levava consigo uma bíblia
a qualquer lugar que fosse.
Ninguém podia ver
a luta interior
na escuridão de sua consciência.

III
Ele rasgou a bíblia
"Deus não está em toda parte,
só vejo eles por aqui. Onde está Deus?"
disse isso e nunca mais falou uma palavra.

IV
Numa tarde de outono
enquanto mamãe e eu assistiámos televisão
ele saiu à rua
e se atirou na frente de um caminhão.

Flávio Soares

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Uma história antiga


Os dois estão sentados à mesa de um bar, tomando cerveja.


- Quer ouvir uma história?

- Sim.


- Então ouça. Havia uma família de cinco pessoas...


- Era sua família?


- Não, eu nem os conhecia. Vou chamá-los de o pai, a mãe, o filho e a filha...


- Não sabe os nomes deles?


- Não. Eles tinham uma empregada...


- Deviam ser ricos, pobres não tem empregada.


- Na verdade, eram de classe média, essa empregada era só uma mulher que chegara do nordeste e trabalhava para eles em troca de um mísero salário, porque não tinha nada nem ninguém em São Paulo...


- Entendo.


- O filho tinha dez anos e a filha oito. Havia na vizinhança um garoto, também de dez anos, que era amigo deles...


- Sabe o nome dele?


- Também não. Esse amigo visitava os filhos todas as tardes, para brincarem. Os pais gostavam dele, achavam-no uma boa companhia para suas crianças...


- E era?


- Não sei.


A bebida acaba. Param a conversa, pedem outra garrafa, enchem os copos e continuam.


- O que mais acontece nessa história?


- O amigo era esperto e malicioso, como a maioria dos moleques nessa idade, já tinha noção da existência do sexo...


- E quanto aos irmãos?


- Eles não, eram ingênuos devido à educação recebida de seus pais. Um dia, à tarde, o amigo foi visitá-los, para brincar com o irmão, mas somente a irmã estava na casa. Aproveitando-se da situação, convidou-a para brincar de médico...


- Essa história é antiga.


- Não me interrompa mais, por favor!


- Perdão. Prossiga.


- Os dois foram a um terreno cheio de matos que havia atrás da casa da família. Lá, sob uma mangueira, o amigo estabeleceu as regras da brincadeira. Ele seria o médico e a garotinha seria a paciente...


- Eu sabia! Oh, desculpe, continue.


- Sem saber por que, a menina, ingênua, deixou que o amigo a despisse e tocasse-a em todo o corpo, e tomada por uma sensação desconhecida, gostou disso. Depois, como paciente que segue à risca as prescrições médicas, deitou-se de bruços a pedido do doutor. Naquela época, embora soubesse que as pessoas faziam sexo, o amigo não sabia bem o que fazer tampouco a menina. Eram virgens, então os dois ficaram apenas abraçados e se deleitando com o contato dos corpos, achando aquilo maravilhoso. Ela sentia-se derreter e ele, por sua vez, parecia que explodiria a qualquer momento, mas não foram além...


- Como pode?


- Sei lá, eram crianças.


- Ficaram só nisso?


- Sim, pois instintivamente, a irmã empurra o amigo, veste-se apressadamente e vai embora, chorando. O garoto permanece no local por mais alguns minutos até que se dá conta de que está nu. Veste-se e no momento que ia para casa, ele sente como se o olho de Deus estivesse esmagando-o.


- Por quê?


- Tenha paciência.


Mais uma garrafa de cerveja. Vão ao banheiro, voltam e o narrador continua.


- Ao olhar para a casa da família, uma visão pavorosa o paralisa. O pai, com um olhar que incendiaria qualquer coisa, estava em cima da laje olhando para ele. A expressão do homem era medonha. Os dois se encararam por um instante, o amigo sentiu um calafrio e suas pernas começaram a tremer...


- Que situação!


- Tremendo de medo, o garoto vai-se, trôpego. O pai apenas segue-o, com os olhos em chamas...


- O pai não fez nada?


- Não...


- Estranho.


- O pior veio depois. Após alguns dias com medo, sem ir à casa da família, o amigo resolveu arriscar uma visita. O pai não fez nada nem falou coisa alguma, continuou tratando-lhe bem, como sempre tratou...


- Talvez ele não tenha visto a brincadeira das crianças.


- Talvez. Tudo parecia normal, mas numa tarde, a empregada entra na história...


- O que ela tem a ver com isso?


- Era o que o amigo se perguntou quando ele apertou a campainha e a mulher apareceu e o chamou para uma conversa em seu quarto...


- Mas que tarada!


- Não é o que você está pensando...


- Ah, sim!


- No quarto, ela o encostou na parede, interrogando-o a respeito de seu relacionamento com a menina, tendo a certeza de que os dois eram namorados...


- E eram?


- Não. Depois daquele acontecimento no terreno, o moleque não ousou mais nada, tinha pavor do pai dela...


- Também deveras.


- E assim foi durante muito tempo, a empregada interrogando o amigo, e o garoto negando sempre. “Confessa, safado, confessa”, dizia ela, e, às vezes, percebendo que ele não falaria nada: “Eu já sei, não adianta tentar esconder”, esbravejava nervosa por não arrancar nenhuma informação da boca do menino...


- Ele teve muita frieza.


- Por favor, deixe-me terminar a história!


- Desculpe, continue.


- Por sorte, a família se mudou para outra cidade, então a tortura acabou. Aos dez anos de idade, mesmo sendo esperto, sua percepção das coisas ainda era infantil. Ele não entendia porque a empregada o acusava como se soubesse de todos os detalhes da brincadeira daquela tarde. Só alguns anos mais tarde, em sua vida adulta, quando teve sua primeira relação sexual de verdade, lembrou da oportunidade que teve na infância com a filha daquela família. Ao lembrar-se disso, um clarão lhe veio à mente como uma vela que é acesa num quarto escuro...


- Não entendi.


- Não?


- Explique-me, por favor. Estou curioso.


- Só havia uma maneira de a empregada saber de tudo. Para isso, ela precisava ter intimidade com o pai, isso até que não é estranho, há muitos patrões que conversam com seus empregados. Mas por que o pai contou à empregada e não à mãe?


- Por quê?


- Só há uma resposta...


- Qual?


- Os dois eram amantes.


- Faz sentido, mas não acho que isso seria motivo para o pai não deixar a mãe a par da situação.


- Você ainda não entendeu...


- Creio que não, agora a história está confusa.


- O pai era tão errado quanto o amigo, os dois eram movidos pelos impulsos sexuais. Querendo ou não, o homem compreendia o garoto, por isso não se sentia correto a ponto de falar com ele.

- Quem te contou essa história?

- Um amigo.



A história termina e a cerveja também. Os dois levantam-se, pagam a conta e vão embora, cada um no seu caminho. O narrador segue tranquilo. O ouvinte vai pensativo.

Flávio Soares

quarta-feira, 18 de março de 2009

A paranoia de um velho

Ele não se olhava em espelhos
nem via fotos antigas
porque isso o envelhecia.

Flávio Soares

sábado, 7 de março de 2009

Numa tarde solitária, a morte

Estirado na cama
morto refletindo sobre a morte
suspiro em harmonia
com o choro do tédio.

Tenho os ouvidos atentos aos barulhos da rua
como um prisioneiro que comtempla o mundo
pelas paredes do cárcere
qualquer som
seja o motor de um carro
a risada de algum bêbado
ou uma voz feminina
pinta a minha volta
um mundo desconhecido.

Cada sinal de vida lá fora
me provoca palpitações fatais.

Flávio Soares

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

No tempo de uma fumada


Ele já tinha lido vários contratos e documentos naquela tarde. As cláusulas com letras miúdas feriram-lhe a vista. Seus olhos pesavam. Sua cabeça doía. Acendeu um cigarro. Foi à janela. Uma, duas, três tragadas. Entrou em meditação.


Na rua, uma senhora passeava com seu cão. Moleques jogavam futebol. Jovens casais transitavam. Um vagabundo dormia profundamente no banco da praça. Pássaros cantavam nos galhos duma árvore. Um velhinho sentado ao portão de uma casa assobiava, sossegado. Uma mulher varrendo a calçada cantarolava uma canção de Caetano Veloso. Uma loira de olhar azul celeste passou embaixo da janela, foi a melhor visão que teve. Quanta tranquilidade. Fora do escritório, longe da papelada, a vida parecia em paz.


Virou-se para a mesa bagunçada. Uma pilha de papéis o aguardava. Acendeu outro cigarro.

Flávio Soares

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Uma perturbação

Todos os problemas do mundo são causados pelo homem, era o que Evandro dizia a si mesmo naquela fria manhã de junho. Há tempos refletia sobre a vida. Sua única conclusão foi de que não existe mal maior que o ser humano. Tendo achado o problema, bastava aniquilá-lo.

Sendo o único morador de uma casa com cinco cômodos, em uma rua num lugar distante, quase desabitado, sentia-se feliz, solitário. Tinha aprendido a não conviver com ninguém. Sexo, abstera-se disso. Sem pessoas, sem confusão, esse era seu lema. Porteiro de um prédio no centro da cidade precisava sorrir aos moradores toda vez que os via, mas isso era demais, ele odiava a humanidade. Como ser amável com eles, se perguntava. Passavam por ele: Bom-dia, Vandão! – assim o chamavam – e o coitado, em sua luta interior, forçando um sorriso, respondia com alegria fingida. Às vezes, depois do serviço, quando a noite apagava o dia, debruçado na janela de seu quarto a observar as estrelas, ele sonhava com uma bomba atômica caindo sobre o planeta, exterminando-o. Seria maravilhoso, falava em suspiros.


Ao acordar naquele dia de inverno, uma idéia lhe perturbava. Levantou-se do leito e não o arrumou como de costume. Preparou café e bolo de fubá, sua refeição predileta. Pôs a mesa. Sentou-se na cadeira da ponta e serviu-se. As outras cadeiras, vazias, o olhavam com tristeza. Depois, de barriga cheia, murmurou uma reza que ecoou por todos os cantos da casa. Vestiu um sobretudo preto, colocou uma toca na cabeça, pegou sua arma na gaveta e partiu em marcha fúnebre.


Em frente à escola, um sujeito espreitava. Muitas mães aguardavam seus filhos. Quem é ele, e o que quer, indagavam. Soou o sinal da saída. As crianças apareceram sorrindo no portão. Um homem, empunhando um revólver, precipita-se na direção delas. Desespero. Gritaria. O sujeito, numa atitude inexplicável, atira nove vezes para o alto e se afasta, chorando.

Flávio Soares

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Coisas do Brasil

Certa vez, no centro da cidade de São Paulo, num ponto de ônibus, alguns jovens estudantes de Engenharia, Direito e Administração conversavam alegremente. Enquanto esperavam a condução que os levaria ao destino desejado, discutiam assuntos de mídia. De repente, um senhor com aparência interiorana, trajando vestes incomuns nos centros urbanos, para próximo a eles.

— Olhem para este sujeito. – falou um engravatado – Parece um personagem do Ariano Suassuna.


Todos gargalharam descontroladamente, afinal, o figurino do homem era o de um cangaceiro, coisa que paulistas seguidores da moda estrangeira, estão desacostumados a ver. Então um dos jovens dirigiu-se ao senhor — esse que não estava entendendo o motivo de tanto riso — e com um tom de voz zombador:


— O senhor é da roça?


Novamente houve uma seqüência de gargalhadas que ridicularizaram o coitado. O homem franziu a testa e fitou a todos com um olhar vazio de quem já era habituado àquilo e, ajeitando o chapéu de couro que lembrava Virgulino, deu as costas aos jovens que não paravam de lhe zombar, mas antes de sair disse:


— Você fala da roça de onde sai o feijão que você come? Ela que é minha!


Os arrogantes universitários pasmados e boquiabertos diante de tal resposta, entreolharam-se atonitamente, mas nada falaram. Um deles ainda pensou em retrucar, não achou palavras.

Flávio Soares

sábado, 31 de janeiro de 2009

Alcoólatra solitário

Garrafa de vinho tinto

quando posa sobre a mesa

tem um charme feminino

torna poética a lua

o álcool, encantamento

possui efeito maligno

feitiço de mulher nua.



Flávio Soares

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Leão

Eu tinha um cachorro
que nunca latia
seu nome era Leão
vivia acorrentado no pé da escada
mesmo quando um gato
passeava pelo muro do quintal
a provocá-lo
ele não fazia nada
eu ficava sempre na expectativa
de ouvir um rugido
que afugentasse o universo.

Todos os dias
quando meu pai
(nordestino derrotado em São Paulo)
voltava bêbado do bar
Leão ia ao seu encontro
com as orelhas em pé e o rabo abanando
papai batia-lhe feito Deus a castigar o mundo
eu sempre interferia e apanhava também
o cãozinho colocava o rabo entre as pernas
e se recolhia triste pra debaixo da escada
enquanto eu ia chorar no banheiro.


Num sábado de sol
soltei o cão na rua
ele correu por todos os lados, feliz
tentei acompanhá-lo, não consegui
até que sumiu numa curva e perdi-o de vista
minutos depois ouvi ganidos
um ônibus o atropelara
quebrando-lhe duas patas
e esmagando-lhe as costelas
estirado no chão
ele não conseguia se mexer
um rio rubro minava de sua boca
seus olhos me diziam algo
que não compreendi
alguns cães uivavam ao seu redor
as pessoas passavam com indiferença.

Meu pai apareceu com uma pá na mão
tinha o semblante infeliz
era verão
o sol brilhava com encanto
meu pai ergueu a pá no ar
como um carrasco ergue o machado
pássaros passaram cantando
o mundo se calou
o vento murmurou uma prece
um minuto de silêncio
veio o golpe de misericórdia
sinos badalaram numa igreja ao longe.

Pela primeira vez
não interferi.

À noite
não pude dormir
urros medonhos
estremeciam o céu.

Flávio Soares

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Estranhamento

Contemplei por tanto tempo o espelho
que minha visão transpassou o vidro
meu mundo virou a imagem.
Com horror
meu reflexo me olhava
lágrimas arranhavam a polidez
perguntei-lhe quem eu era
não me disse nada.

O silêncio amordaçou
todas as respostas.

Flávio Soares