segunda-feira, 27 de abril de 2009

Elegia a Antônio

Com regozijo
me lembro de Antônio
que estava sempre feliz
sorrindo em qualquer circunstância
a vida lhe parecia tão mansa
era um Pangloss...

Todos os momentos ao seu lado
à mesa de um bar
num banco de praça a prosear
ou caminhando pela cidade
eram estranhos
me causava despeito estar próximo a ele
eu me perguntava
como alguem podia ser
constantemente alegre.
Ah! Como eu o invejava...

Durante muito tempo
evitei minha memória
pra não sentir falta de nada
porque a saudade é lúgubre
mas eu não sabia
que a felicidade se encontra
na tristeza da nostalgia
pois só sentimos falta
do que nos foi bom,
então penso em Antônio
que nunca ficou triste
pra conhecer sua felicidade.

Flávio Soares

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Uma luta interior

Numa manhã ele acordou
mandando todos calarem a boca
mas o restante da família ainda dormia.
Uma semana depois
a casa estava repleta de crucifixos
e imagens de todos os tipos de santos
às vezes eu o via
paralisado no corredor
olhando aterrorizado para sei-lá-o-que
"Cuidado" dizia ele "Eles estão à espreita"
Quem eram Eles?
Tamanho era seu medo
que ninguém ousava dizer
que não os via tampouco os ouvia.

Pobre papai, ele realmente achava
que estavam a vigiá-lo
e assim, passava noites e noites de insônia
relendo trechos da bíblia.
Com o tempo, parou de falar
porque Eles o espionavam
ouviam nossa conversa
"Eles não vão me pegar" eram suas únicas palavras
que repetia
como se fosse uma reza protetora.

II
Havia uma paisagem triste em seus olhos
era o prenúncio do fim
Eles estavam em toda parte
era impossível fugir
papai sorvia álcool
como se adquirisse poder a cada gole
Eles se reproduziam com velocidade
estavam prestes a dominar o mundo
riam do medo de meu pai
que não apagava as luzes
mesmo durante o dia
e levava consigo uma bíblia
a qualquer lugar que fosse.
Ninguém podia ver
a luta interior
na escuridão de sua consciência.

III
Ele rasgou a bíblia
"Deus não está em toda parte,
só vejo eles por aqui. Onde está Deus?"
disse isso e nunca mais falou uma palavra.

IV
Numa tarde de outono
enquanto mamãe e eu assistiámos televisão
ele saiu à rua
e se atirou na frente de um caminhão.

Flávio Soares

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Uma história antiga


Os dois estão sentados à mesa de um bar, tomando cerveja.


- Quer ouvir uma história?

- Sim.


- Então ouça. Havia uma família de cinco pessoas...


- Era sua família?


- Não, eu nem os conhecia. Vou chamá-los de o pai, a mãe, o filho e a filha...


- Não sabe os nomes deles?


- Não. Eles tinham uma empregada...


- Deviam ser ricos, pobres não tem empregada.


- Na verdade, eram de classe média, essa empregada era só uma mulher que chegara do nordeste e trabalhava para eles em troca de um mísero salário, porque não tinha nada nem ninguém em São Paulo...


- Entendo.


- O filho tinha dez anos e a filha oito. Havia na vizinhança um garoto, também de dez anos, que era amigo deles...


- Sabe o nome dele?


- Também não. Esse amigo visitava os filhos todas as tardes, para brincarem. Os pais gostavam dele, achavam-no uma boa companhia para suas crianças...


- E era?


- Não sei.


A bebida acaba. Param a conversa, pedem outra garrafa, enchem os copos e continuam.


- O que mais acontece nessa história?


- O amigo era esperto e malicioso, como a maioria dos moleques nessa idade, já tinha noção da existência do sexo...


- E quanto aos irmãos?


- Eles não, eram ingênuos devido à educação recebida de seus pais. Um dia, à tarde, o amigo foi visitá-los, para brincar com o irmão, mas somente a irmã estava na casa. Aproveitando-se da situação, convidou-a para brincar de médico...


- Essa história é antiga.


- Não me interrompa mais, por favor!


- Perdão. Prossiga.


- Os dois foram a um terreno cheio de matos que havia atrás da casa da família. Lá, sob uma mangueira, o amigo estabeleceu as regras da brincadeira. Ele seria o médico e a garotinha seria a paciente...


- Eu sabia! Oh, desculpe, continue.


- Sem saber por que, a menina, ingênua, deixou que o amigo a despisse e tocasse-a em todo o corpo, e tomada por uma sensação desconhecida, gostou disso. Depois, como paciente que segue à risca as prescrições médicas, deitou-se de bruços a pedido do doutor. Naquela época, embora soubesse que as pessoas faziam sexo, o amigo não sabia bem o que fazer tampouco a menina. Eram virgens, então os dois ficaram apenas abraçados e se deleitando com o contato dos corpos, achando aquilo maravilhoso. Ela sentia-se derreter e ele, por sua vez, parecia que explodiria a qualquer momento, mas não foram além...


- Como pode?


- Sei lá, eram crianças.


- Ficaram só nisso?


- Sim, pois instintivamente, a irmã empurra o amigo, veste-se apressadamente e vai embora, chorando. O garoto permanece no local por mais alguns minutos até que se dá conta de que está nu. Veste-se e no momento que ia para casa, ele sente como se o olho de Deus estivesse esmagando-o.


- Por quê?


- Tenha paciência.


Mais uma garrafa de cerveja. Vão ao banheiro, voltam e o narrador continua.


- Ao olhar para a casa da família, uma visão pavorosa o paralisa. O pai, com um olhar que incendiaria qualquer coisa, estava em cima da laje olhando para ele. A expressão do homem era medonha. Os dois se encararam por um instante, o amigo sentiu um calafrio e suas pernas começaram a tremer...


- Que situação!


- Tremendo de medo, o garoto vai-se, trôpego. O pai apenas segue-o, com os olhos em chamas...


- O pai não fez nada?


- Não...


- Estranho.


- O pior veio depois. Após alguns dias com medo, sem ir à casa da família, o amigo resolveu arriscar uma visita. O pai não fez nada nem falou coisa alguma, continuou tratando-lhe bem, como sempre tratou...


- Talvez ele não tenha visto a brincadeira das crianças.


- Talvez. Tudo parecia normal, mas numa tarde, a empregada entra na história...


- O que ela tem a ver com isso?


- Era o que o amigo se perguntou quando ele apertou a campainha e a mulher apareceu e o chamou para uma conversa em seu quarto...


- Mas que tarada!


- Não é o que você está pensando...


- Ah, sim!


- No quarto, ela o encostou na parede, interrogando-o a respeito de seu relacionamento com a menina, tendo a certeza de que os dois eram namorados...


- E eram?


- Não. Depois daquele acontecimento no terreno, o moleque não ousou mais nada, tinha pavor do pai dela...


- Também deveras.


- E assim foi durante muito tempo, a empregada interrogando o amigo, e o garoto negando sempre. “Confessa, safado, confessa”, dizia ela, e, às vezes, percebendo que ele não falaria nada: “Eu já sei, não adianta tentar esconder”, esbravejava nervosa por não arrancar nenhuma informação da boca do menino...


- Ele teve muita frieza.


- Por favor, deixe-me terminar a história!


- Desculpe, continue.


- Por sorte, a família se mudou para outra cidade, então a tortura acabou. Aos dez anos de idade, mesmo sendo esperto, sua percepção das coisas ainda era infantil. Ele não entendia porque a empregada o acusava como se soubesse de todos os detalhes da brincadeira daquela tarde. Só alguns anos mais tarde, em sua vida adulta, quando teve sua primeira relação sexual de verdade, lembrou da oportunidade que teve na infância com a filha daquela família. Ao lembrar-se disso, um clarão lhe veio à mente como uma vela que é acesa num quarto escuro...


- Não entendi.


- Não?


- Explique-me, por favor. Estou curioso.


- Só havia uma maneira de a empregada saber de tudo. Para isso, ela precisava ter intimidade com o pai, isso até que não é estranho, há muitos patrões que conversam com seus empregados. Mas por que o pai contou à empregada e não à mãe?


- Por quê?


- Só há uma resposta...


- Qual?


- Os dois eram amantes.


- Faz sentido, mas não acho que isso seria motivo para o pai não deixar a mãe a par da situação.


- Você ainda não entendeu...


- Creio que não, agora a história está confusa.


- O pai era tão errado quanto o amigo, os dois eram movidos pelos impulsos sexuais. Querendo ou não, o homem compreendia o garoto, por isso não se sentia correto a ponto de falar com ele.

- Quem te contou essa história?

- Um amigo.



A história termina e a cerveja também. Os dois levantam-se, pagam a conta e vão embora, cada um no seu caminho. O narrador segue tranquilo. O ouvinte vai pensativo.

Flávio Soares