domingo, 26 de dezembro de 2010

Deleite

A porta do quarto entreaberta
ela trocando de roupa
meus olhos em chamas.

Flávio Soares

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Avidez mortal

Quando os bares fecharam
ele saiu louco pelas ruas
em busca duma dose de qualquer coisa
para acalmar sua consciência.

No meio da noite
seus sapatos nervosos pisando o asfalto
e a presença invisível de Deus.

Flávio Soares

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Triste engano


Às onze da noite, o telefone tocou. Diogo não conversava com seus parentes, tampouco tinha amigos, por isso nunca recebia telefonemas. Possuía telefone só para emergências. Odiava falar com alguém sem olhar nos olhos. Aquela ligação inesperada interrompeu seu sono. Ao ouvir o ring, pensou em não atender, porém o toque não cessava. "Deve ser importante", pensou. Levantou-se. Caminhou, irritado, até o aparelho. Pegou o gancho. "Alô", bufou.

- Por que me evita? - perguntou uma jovem voz feminina.

- Creio que houve um engano, moça.

- Não banque o esperto. Estou te procurando há semanas. Por onde andou?

- Tem certeza de que sabe com quem está falando?

- Não me venha com seus sarcasmos!

- Tudo bem. Não precisa gritar.

- Estou triste...

Ele já tencionava desligar, mas, devido ao timbre dolente dela, sentiu-se apanhado por um misto de comoção e curiosidade. Concluíra que a coitada, de fato, pensava que ele era outra pessoa. Sem saber por que, deu corda na situação:

- Me desculpe, linda.

- É só isso que tem a dizer?

- O que quer que eu diga, amor?

- Ora essa! Me abandona sem qualquer razão e só pede desculpas. Exijo explicações.

- Estive muito ocupado.

- Com o quê?

- Complicações.

O rapaz não achava mais jeito de manter a conversa. Estava prestes a contar a verdade, dizer que ela tinha discado o número errado, que ele nem sequer tinha namorada. Esperou que a garota dissesse algo. Houve alguns segundos de silêncio e uns soluços vindos do outro lado da linha que o perturbaram.

- Eu quero te ver. - chorou ela.

Enternecido, Diogo a consolou dizendo que não havia motivo para tristeza. Prometeu visitá-la quando amanhecesse. Disse algumas palavras típicas de namorado apaixonado e desligou. Em seguida, retomou o sono. Sonhou que não era Diogo.


Flávio Soares
    


quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Elegia a Antônio II

A existência nunca foi tão vã
como é neste momento
que bebo pensando em ti, amigo.
Tu que fostes um homem de filosofia simples:
''Não se preocupe e será feliz"
o eco dessas palavras perdura
como a incerteza sobre Deus numa mente descrente.

Meus dias são iguais
minhas inquietudes diferentes
os teus, no leito sepulcral, são iguais
mas a paz, sempre a mesma.

À mesa de um bar
bebendo triste e só
recordo quando discutíamos Rousseau
"O homem é naturalmente bom", você lembrava.
Teu semblante sereno como o de um velho professor
ainda habita minhas lembranças.

Uma vez dissestes:
"A felicidade tem um grau variável,
o da infelicidade é sempre alto
basta calcularmos as coisas
para não termos decepções".

Eu errei o cálculo
cá estou a mergulhar
no álcool gelado.

Flávio Soares

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Imortal

"Um dia", falou ele
"Jogar-me-ei de um penhasco.
Desmanchar-me-ei
como um pingo de chuva se desfaz
ao atingir o chão.
Meu sangue banhará a terra
de onde brotarão plantas
que alimentarão insetos
que os pássaros comerão.
Então um caçador
matará um ganso para alimentar sua família.
Assim de vida em vida
passará minha essência
e serei imortal."

Flávio Soares

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Em agradecimento ao escritor Jorge de Barros que postou em seu blog (http://ooficiodoocio.blogspot.com/) uma lista de dez blogs na qual estava Flantuares, agora segue abaixo a minha lista.


1. http://ooficiodoocio.blogspot.com/ - Blog de Jorge de Barros, escritor que adimiro muito.


2. http://blogs.universia.com.br/grupodeescritoresdauniabc - Blog do Grupo de Escritores da Uniabc coordenado pelo professor de Língua Portuguesa Sérgio Simka


3. http://meiopau.blogspot.com/ - Blog do escritor Thiago Almeida. Contém crônicas, contos e poemas ambientados no cotidiano.


4. http://poesiailimitada.blogspot.com/ - Blog dos portugueses João Luis Barreto Guimarães e Jorge Sousa Braga. É um excelente trabalho de divulgação da poesia mundial .

5. http://publicandobr.blogspot.com/ - Blog do publicitário Airton que aborda de maneira inteligentíssima temas como cinema, musica entre outras coisas.

Flávio Soares

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Um desperdício

Estávamos com doze anos. Tínhamos pegado uma semana sem aula. Isso significava sete dias para brincarmos à vontade. No primeiro dia, para nossa decepção, caiu uma tempestade. Ficamos horas esperando que ela cessasse. Até que, à tarde, Evilásio, sob o pretexto de que o pé d'água não pararia, me convidou a sair na chuva. 'O que podemos fazer nesse temporal?", perguntei. Após alguns minutos de conversa, ele convenceu-me dizendo que seria divertido. "Não podemos desperdiçar esses dias só por causa de uma chuvinha", brincou. Sem pensar nas consequências, saímos.


As ruas estavam alagadas. Deitamos nas poças d'água, fazendo de conta que estávamos nadando em um rio. Às gargalhadas, rolamos no chão feito porcos na lama. Sabíamos que nossas mães odiariam aquilo, principalmente porque nossas roupas ficaram imundas, mas não ligamos para isso. 'Tá com você", disse ele, disparando numa carreira, após tocar meu braço. Corri atrás dele pelo bairro. A chuva se intensificava a cada segundo. De repente, ouvi um som estrondoso dum caminhão. Só tive tempo de gritar:


- Evilásio!


O veículo vinha em alta velocidade e fora de controle devido ao asfalto molhado. Acertou meu amigo em cheio, arremessando-o a uns quatro metros de distância. Foi um acidente fatal.


No dia seguinte, o de seu enterro, o sol estava a pino. Os metereologistas constataram que foi o dia mais quente daquele ano. Ainda no cemitério, o pai de Evilásio veio a mim:


- Não entendo. O que os fez sair naquela chuva?


Olhei-lhe nos olhos. Sua expressão era comovente. Não consegui respondê-lo. Sei que com um pouco mais de paciência aquilo não teria acontecido. E seu filho e eu talvez estaríamos correndo pelas ruas da cidade como animais selvagens correm livres pela floresta. No entanto, não falei nada. Caminhei em direção à saída. Tive medo que o homem insistisse naquele questionamento.


Depois disso, faça chuva ou faça sol, sigo o conselho do meu camarada. Não desperdiço meus dias.


Flávio Soares

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Uma promessa de amor

Quando ela partiu
jurei que deixaria de beber
se ela voltasse.

Já faz tanto tempo...

Minha casa está repleta
de cerveja e vodka.

Flávio Soares

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Reflexo inevitável

Quando eu tinha dez anos
meu pai me nocauteou com um soco.
"Levanta, moleque", gritou ele.
"Como você vai enfrentar o mundo desse jeito?"
Senti a tristeza de um cão ao apanhar do dono
misturada com a coragem de Davi
quando enfrentou Golias
e devolvi o golpe.

A partir daí
seguiram-se muitas lutas.

Passaram-se anos
meu pai já foi derrotado
e continuo lutando
pois há na sociedade
a maneira impositória dele
mas há em mim
o anjo caído
que se rebelou contra seu Deus.

Flávio Soares

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Televisão em preto e branco

Nos anos 90
eu assistia desenhos animados
numa televisão em preto e branco
para mim, aqueles
eram os melhores programas do mundo.
Meu pai tinha um rádio a pilha
que mais parecia um cacho de abelha
tamanho era o chiado que produzia
para ele, era o melhor rádio do mundo.

Um dia, enquanto estavámos a passeio
ladrões invadiram nossa casa
e levaram os aparelhos.
Meu pai ficou furioso
não pelo prejuízo, mas pela estima
que possuia por seu rádio
eu, no fundo, gostei
porque minha mãe o convenceu
a comprar uma TV a cores
e um som que tocasse CD.

Meu pai chorou três dias
ninguém entendeu por quê.

Hoje
assistindo programas
que não me agradam
compreendo a tristeza de meu velho
e sinto saudades daquele televisor em preto e branco
que passava os desenhos que eu gostava.

Não gosto mais de TV
choro todos os dias
ninguém entende por quê.

Flávio Soares

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Mudança


Seu problema era a timidez. Isso o atrapalhava em sua vida social. Tinha dificuldades para falar em público, por isso isolara-se. Se na escola alguém falava com ele, dava respostas monossilábicas. Quando alguma garota lhe dirigia a palavra, corava e nenhuma sílaba saía. Era vítima de todos os tipos de chacotas. Achavam-no esquisito.

Um dia, movido por um impulso típico da adolescência, resolveu fazer uma tatuagem, um dragão vermelho no braço direito. Sem saber por que, sentiu-se mais forte com aquele desenho. Sabia que para os chineses o dragão era sagrado. “Talvez eu devesse ter nascido chinês”, pensou. Não contou a seus pais. Eles eram muito bravos. Fez isto escondido. Ao chegar em casa, trancou-se no quarto, ficando horas em frente ao espelho, admirando a obra em sua pele.

No dia seguinte, na escola, arregaçou as mangas da camiseta e na hora do intervalo, desfilou pelo pátio, exibindo o braço tatuado. Todos se admiraram. Aproximaram-se dele. Puxaram conversa. Queriam saber detalhes do processo de tatuagem. Perguntavam-lhe se doera e porque escolhera um dragão. As meninas sorriram diferente. Sentiu-se outra pessoa. Não era mais o introvertido que não conseguia conversar com ninguém.

Na sala de aula, as garotas que sempre se sentavam longe, agora estavam bem próximas. Bombardeavam-no com olhares insinuantes e, a cada cinco minutos, uma lhe falava em tom doce, quase sexual: “Me deixa ver sua tatuagem”.

Ao sair dali, gastou o resto de sua mesada em outra tatuagem. Dessa vez, fez um anjo montado numa rosa gigante na coxa direita, próximo à virilha. Quando alguma garota lhe pedia para mostrar o dragão, ele exibia-o, dizendo: “Tenho outra mais bonita. Quer ver?”. Sua fama começou a correr pela escola. Os outros garotos respeitavam-no e invejavam-no. As meninas admiravam-no.

Numa tarde calorenta, aproveitando-se que seus pais estavam trabalhando, ele deitou-se, nu, no sofá, ao som de Guns ‘n’ Roses. Ao fim de três canções, adormeceu. Duas horas depois, flagraram-no com as tatuagens a mostra. Seu pai deu-lhe uma surra, várias cintadas nos locais tatuados. “Suba ao seu quarto e não saia de lá até ordenarmos!”, gritou sua mãe. Lá de cima, podia ouvi-los conversando a respeito dele. Discutiam um jeito de remover as tatuagens a laser.

À noite, enquanto seus pais dormiam, saiu de casa, levando consigo uma mochila com tudo que julgava indispensável. Foi a última vez que o viram na cidade.

Flávio Soares

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Alberto Caeiro, o mestre

Eu descobri o pasmo essencial
infelizmente, não me é perfeito
perdi a inocência de não pensar
não olho para o mundo
como uma abelha vê uma flor desabrochar
miro tudo que existe
com a tristeza de um homem feio
quando contempla uma mulher bonita.

Desculpe, mestre
eu falhei.

Flávio Soares

quinta-feira, 6 de maio de 2010

O inferno

"Talvez esse mundo seja o inferno de outro planeta"

Aldoux Huxley


"De tanto ver triunfar as nulidades
o homem chega a desanimar da virtude
rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto"

Rui Barbosa



Acredito que já tive uma outra vida
quem sabe em outro planeta
e devo ter sido desprezível.

Amei mais a mim do que a Deus
matei, roubei, desonrei meus pais
cantei injúrias, desejei a mulher do meu amigo
fiz todo tipo de heresia.

Então, quando morri dirigi-me ao céu
São Pedro, nunca vi santo mais covarde, impediu-me
de entrar no reino do Senhor
fechando os portões na minha cara.
Insisti. Apelei para o arrependimento
disse que todos mereciam perdão
humilhei-me sem saber por quê.
Acho que só queria assistir
a tragicomédia do universo
dum lugar confortável.

Chamaram os outros santos
fizeram uma assembleia
levaram o caso à Jesus
mas não deu em nada
tantos apelos de pobres e desamparados
e eles preocupados comigo.
A justiça é repugnante.


Quando já não sabiam o que fazer
Deus apareceu:
"Vais penar na Terra.
A honestidade será seu calvário"



Flávio Soares

sexta-feira, 26 de março de 2010