quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O coleirinha

Há um coleirinha no telhado
cantando como se fosse
o último do mundo
tão dolente é seu canto
parece que vai morrer.

Através da janela
vejo os carros
urrarem na avenida
as pessoas na calçada
não ouvem o pássaro
que não pára de cantar
só os cães acorrentados
atentam ao prenúncio.

Eu tiro uma foto dele
e o mantenho salvo para sempre.

Flávio Soares

terça-feira, 28 de outubro de 2008

O poema que Fanny não leu

"É só um grande homem em grego"
Eça de Queiróz


Exilado em um gelado inferno
através duma janela de hotel
Korriscoso vê o mundo
vestir a neve.

Causa tristeza vê-lo...

Príncipe ateniense
transformado em criado
à espera do ósculo libertador
da Afrodite inglesa
infeliz,
chora odes.

Os cabelos louros de Fanny
tingem de luz
a escuridão de sua melancolia
o alfabeto grego
inunda o guardanapo
os gentlemen que o vêem
penando pelo Charing Cross
não imaginam seu lirismo.

E Fanny fantasia um Adônis
num Ares inglês.

Flávio Soares

domingo, 26 de outubro de 2008

O corpo dela

Seu corpo belo nu e florescido
iluminado pela luz lunar
me faz um fogo tão estremecido
mais perigoso que o calor solar.

E sobre a cama quando adormecido
me incita a versos de se arrepiar
que eu os escrevo em transe enlouquecido
apetecido por a contemplar.

Sedento, sinto a carne alvoroçada
a pele ardente por brasa tomada
fico enlevado na doce visão

do corpo dela ali me provocando
me seduzindo pra matar-me então
de só viver a ela desejando.

Flávio Soares

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

A perda da inocência

Tempo saudoso em que feliz vivia
num conto belo de alegrias mil
na vida minha o meu ser nunca via
sórdido mundo, essa verdade vil.

Na minha mente poesia havia
junto c'um céu de cor azul anil
minha visão era uma fantasia
como se fosse neve no Brasil.

Mas só que hoje o que restou de mim
são restos pútridos dum ser humano
sou este homem que aqui está se lendo.

Que se desfaz na mente atrás do fim
de não viver a vida em desengano.
Abri meus olhos. Mas que mundo horrendo!

Flávio Soares

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

A primavera do século XXI

A primavera despiu-se
devido ao forte calor de sua beleza
uma falsa beleza.
O seu florido suor
banha a fatigada face da terra
de semblante agonizante
e dissimuladamente
a primavera sorri.
Uma flor nasce no asfalto
tão bonita e esquisita
mas instantaneamente tomba
em fatais espasmos de dor
cancerosa em suas pétalas.

Chorem aqueles
que já foram tão belos um dia
e que hoje encaram os espelhos de olhos vendados
e rezem pela primavera
esse cadáver que recusou-se a ser enterrado
e preferiu ser cremado
nos venenosos raios solares
e ter suas cinzas espalhadas no ar
que os tufões sempre levam
pra passear na fumaça.
Flávio Soares

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Efeito de alienação

Capítulo 1


Acordei com o toque do meu celular. Desliguei-o e nem quis saber quem era. Fiquei na cama por mais alguns minutos. Além de ser um domingo, ainda eram sete horas da manhã e queria dormir até meio-dia. Já estava pegando no sono de novo, quando o aparelho toca novamente. Irritado, resolvi atendê-lo. Era Ricardo, o baixista da minha ex-banda, quem ligava. Há anos não nos falávamos, pois eu estava morando na capital e depois de me mudar de Mauá, não voltei mais lá.
- Olá, Jonas! Há quanto tempo, hein!
- Pois é, digo o mesmo, velho amigo.

Conversamos um pouco sobre nossas vidas, ele continuava morando na mesma casa e levava a mesma vidinha pacata na oficina mecânica de seu pai. Depois que terminou o ensino médio não estudou mais. Namorava a Adriana, uma menina horrorosa, que estudou com a gente no ginásio. Quase não acreditei nisso. Falei-lhe sobre minha vida na faculdade de contabilidade e meu emprego no escritório, mesmo sabendo que ele não entendia muito dessas coisas. Mas estranhando aquela ligação após anos longe daquela cidade, perguntei em tom de gracejo:
- O que o faz ligar após tanto tempo? Alguma noticia especial?
- Nem sei como te dizer, cara. – e com sua voz calma como a de um padre – Elder morreu.
Não acreditei. Fiquei uns segundos mudo, até que ouvi a voz de Ricardo me chamando:
- Jonas!
- Quando foi? – perguntei incrédulo.
- Há três dias. Desculpe ter te informado só agora, mas é que você sumiu. Deu trabalho conseguir seu número de telefone. Quando puder, passe aqui, assim podemos conversar melhor.

Conversamos mais um pouco, porém ele teve que desligar o telefone, pois tinha que buscar a namorada na casa dela porque a prometera levá-la ao cinema naquele dia, e já estava atrasado. Pelo tom de sua voz, percebi que ela o dominava.
Elder foi meu amigo na infância e na adolescência. Gostava demais dele, nos divertíamos muito juntos. Nascera com uma voz maravilhosa, por isso era o vocalista da banda. Há tempos não o via e nem pensava nele. Fiquei aturdido com a noticia de sua morte. Pensei em ligar para sua casa, falar com sua mãe e saber se ela precisava de algo, afinal, ela sempre me tratou bem. Revirei minhas coisas a procura da minha agenda telefônica, mas não a achei, e meu celular era novo, não tinha o número dela. Sem pensar duas vezes, peguei meu carro e fui a Mauá. No caminho, através da janela, reparei na paisagem das cidades que iam passando e lembrei-me das andanças que fazia com meus amigos por essas regiões, quando éramos adolescentes.

Em uma hora cheguei a Mauá. Era verdade. Encontrei a mãe dele chorando no sofá. Abracei-a, dei-lhe os pêsames e me contive para não chorar na frente dela. Conversamos um pouco e ela me chamou para subir ao quarto onde o encontraram morto. Disse-me que se tivesse sido mais atenta, teria previsto aquilo.

O local estava intocado desde o ocorrido, ninguém havia mexido em nada. Era o mesmo lugar que nós usávamos para ensaiar as músicas de nossa banda. Os pôsteres de Elvis Presley, John Lennon e Jimmy Hendrix já estavam há quase duas décadas na parede. A guitarra em cima da cama, que ele batizou de Rock Piece, era a mesma que ele usava na banda. A única que ele usou sua vida toda, pois aquela lhe era especial. Chorei. Dona Estela passou a mão em minha cabeça e chorou também.

O telefone toca, ela vai atendê-lo. Ando desconsolado pelo quarto, revistando tudo. Vejo uma câmera de vídeo em cima da cômoda. Quando a pego na mão percebo que ela está ligada. Sempre fui curioso e naquela hora, aquilo despertou minha curiosidade. Pensei: “Por que a câmera está ligada?”.

Vasculhei-a. Tinha algo gravado. Apertei o play e quase tombei de susto. Vi Elder sentado na cama com uma garrafa de conhaque numa mão e um baseado enorme na outra. Ele deu um trago forte, duas goladas exageradas e disse:
- Olá! Se você está assistindo a essa gravação, então estou morto.
De repente ouvi os passos de Dona Estela na escada. Desliguei a câmera e meti-a embaixo da jaqueta, depois fiz o possível para disfarçar minha cara de espanto. Quando ela entrou no quarto, disse-lhe:
- Dona Estela, estou profundamente triste. Elder era meu amigo de infância, e também, o melhor que tive. Nunca mais haverá uma amizade como a nossa. – dramático, mas sincero – Vou-me embora, pois as lembranças que este quarto me traz, embora alegres, também são doloridas nesta hora.
- Tudo bem Jonas, compreendo. Vá e viva de maneira a não acabar como meu filho, mas volte de vez em quando para me visitar. Elder era filho único, por isso via em você o irmão que nunca teve. E eu sempre o tive como um segundo filho. - se ela soubesse que fui eu quem ofereceu a Elder o primeiro baseado, talvez não tivesse dito isso.

Despedi-me dela e saí com os olhos carregados de lágrimas. Estava a falar sozinho no caminho de volta pra casa, me perguntando por que aquilo acontecera. Daí senti um peso na jaqueta, me lembrei da câmera. Apressei-me, mas antes que chegasse em casa, passei num bar para tomar um conhaque e refletir sobre a vida.

Flávio Soares

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Uma velha inconformada

Era uma velha inconformada. Não suportava ver o tempo no espelho. Tinha os cabelos curtos e tingidos de um preto triste. As unhas pintadas de vermelho-vivo tentavam disfarçar a pele enrugada das trêmulas mãos.

Há dias estava trancada no quarto. Ninguém a convencia a sair. Nem atendia o telefone, pois lhe causava horror ouvir a própria voz, rouca e devagar como a de uma bruxa. Na penteadeira, em frente ao espelho quebrado, um retrato de décadas atrás. Os cabelos negros e compridos adornavam o rosto pálido de princesa medieval. O sorriso hipnótico dava a impressão que a fotografia era viva. Álvares de Azevedo, certamente, a faria mil poemas e morreria de amor por ela.

Passava as tardes na janela, se embriagando com vinho e observando as mocinhas passearem na rua. A cada uma que via, dizia a si mesma: “eu fui mais bonita”. No fundo, invejava-as. Fantasiava roubar-lhes os namorados e vê-las mortas de ciúmes. Às vezes esquecia sua idade e sonhava com os jovens que por ali passavam. “Com este eu me casaria”, pensava. Quando batiam à porta dizendo: “Vovó!”. O sonho virava pesadelo.

Os filhos, sempre ocupados, não tinham tempo para conversar com ela, por isso não notavam sua depressão. Se ao menos o marido estivesse ali para lhe fazer companhia. Sortudo, morreu aos trinta e cinco anos sem nenhum fio de cabelo branco. Quando o conheceu a família disse que ele parecia um galã de novela. Ainda guarda na memória a noite de núpcias, quando ele, feito poeta apaixonado, lhe chamava de deusa.

Após ficar viúva, penou para criar os quatro meninos. Trabalhava sem descanso. Arruinou sua saúde. Agora estavam casados, e ela uma idosa adoentada e solitária. Seu hobby era recordar a juventude. Convivia com a solidão e a velhice. Vagava pela casa a falar sozinha, ora maldizendo o mundo, ora evocando Alfredo, o finado esposo. Os familiares achavam normal isso, é a idade, diziam. Achavam-na caduca. Os netos tinham medo dela, não ousavam olhá-la.

Mas naquele dia, algo estava estranho. Ouviram-na rir, coisa que não fazia há tempos. Bateram na porta. Não atendeu. As risadas aumentaram. A senhora gargalhava alucinadamente. Julgaram-na louca. “Não devíamos deixá-la beber”, alertou um dos filhos. De repente a escutaram dizer: “Estou indo, Alfredo”. E fez-se um silêncio amedrontador.

Preocupados, arrombaram a porta. Jazia estirada no chão, maquiada e vestida em sua melhor roupa, como se fosse a um encontro. A expressão de seu rosto denotava uma satisfação inexplicável. Ao choro dos filhos que encheu o quarto de melancolia, só um retrato de uma sedutora jovem sorria.
Flávio Soares

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Vencer ou vencer

Quando meu pai enlouqueceu
o manto da noite o envolveu
sua cegueira só lhe permitia ver
o riso sádico dos espectros
que seguravam suas mãos
quando perambulava nas ruas
por isso ele ria mais alto
e melhor
porque ria sempre por último
pois não os temia.

Um dia, ele venceu a luta contra os espectros

Foi no verão,
pássaros gorjeavam um hino de guerra
e o sol lhe queimava
todo o mal que a Terra o fez.

Seu corpo voou contra a nave dos espectros
num golpe kamikaze.

Flávio Antunes Soares