Numa manhã ele acordou
mandando todos calarem a boca
mas o restante da família ainda dormia.
Uma semana depois
a casa estava repleta de crucifixos
e imagens de todos os tipos de santos
às vezes eu o via
paralisado no corredor
olhando aterrorizado para sei-lá-o-que
"Cuidado" dizia ele "Eles estão à espreita"
Quem eram Eles?
Tamanho era seu medo
que ninguém ousava dizer
que não os via tampouco os ouvia.
Pobre papai, ele realmente achava
que estavam a vigiá-lo
e assim, passava noites e noites de insônia
relendo trechos da bíblia.
Com o tempo, parou de falar
porque Eles o espionavam
ouviam nossa conversa
"Eles não vão me pegar" eram suas únicas palavras
que repetia
como se fosse uma reza protetora.
II
Havia uma paisagem triste em seus olhos
era o prenúncio do fim
Eles estavam em toda parte
era impossível fugir
papai sorvia álcool
como se adquirisse poder a cada gole
Eles se reproduziam com velocidade
estavam prestes a dominar o mundo
riam do medo de meu pai
que não apagava as luzes
mesmo durante o dia
e levava consigo uma bíblia
a qualquer lugar que fosse.
Ninguém podia ver
a luta interior
na escuridão de sua consciência.
III
Ele rasgou a bíblia
"Deus não está em toda parte,
só vejo eles por aqui. Onde está Deus?"
disse isso e nunca mais falou uma palavra.
IV
Numa tarde de outono
enquanto mamãe e eu assistiámos televisão
ele saiu à rua
e se atirou na frente de um caminhão.
Flávio Soares
2 comentários:
Texto forte, sensacional.
"Conduzir" uma paranoia sem cometer um desfecho chocante, é impossivel e, definitivamente, provavel de uma surpresa.
Abração, Flavio!
vc sempre me surpreende com seus escritos !!!
Muito bom...aparece lá no sopa tá? as vezes sumo um pouquinho...mas é total falta de tempo !!!
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