quinta-feira, 16 de abril de 2009

Uma luta interior

Numa manhã ele acordou
mandando todos calarem a boca
mas o restante da família ainda dormia.
Uma semana depois
a casa estava repleta de crucifixos
e imagens de todos os tipos de santos
às vezes eu o via
paralisado no corredor
olhando aterrorizado para sei-lá-o-que
"Cuidado" dizia ele "Eles estão à espreita"
Quem eram Eles?
Tamanho era seu medo
que ninguém ousava dizer
que não os via tampouco os ouvia.

Pobre papai, ele realmente achava
que estavam a vigiá-lo
e assim, passava noites e noites de insônia
relendo trechos da bíblia.
Com o tempo, parou de falar
porque Eles o espionavam
ouviam nossa conversa
"Eles não vão me pegar" eram suas únicas palavras
que repetia
como se fosse uma reza protetora.

II
Havia uma paisagem triste em seus olhos
era o prenúncio do fim
Eles estavam em toda parte
era impossível fugir
papai sorvia álcool
como se adquirisse poder a cada gole
Eles se reproduziam com velocidade
estavam prestes a dominar o mundo
riam do medo de meu pai
que não apagava as luzes
mesmo durante o dia
e levava consigo uma bíblia
a qualquer lugar que fosse.
Ninguém podia ver
a luta interior
na escuridão de sua consciência.

III
Ele rasgou a bíblia
"Deus não está em toda parte,
só vejo eles por aqui. Onde está Deus?"
disse isso e nunca mais falou uma palavra.

IV
Numa tarde de outono
enquanto mamãe e eu assistiámos televisão
ele saiu à rua
e se atirou na frente de um caminhão.

Flávio Soares

2 comentários:

Thiago Almeida disse...

Texto forte, sensacional.

"Conduzir" uma paranoia sem cometer um desfecho chocante, é impossivel e, definitivamente, provavel de uma surpresa.

Abração, Flavio!

Tatiane Garcia disse...

vc sempre me surpreende com seus escritos !!!
Muito bom...aparece lá no sopa tá? as vezes sumo um pouquinho...mas é total falta de tempo !!!