quinta-feira, 2 de abril de 2009

Uma história antiga


Os dois estão sentados à mesa de um bar, tomando cerveja.


- Quer ouvir uma história?

- Sim.


- Então ouça. Havia uma família de cinco pessoas...


- Era sua família?


- Não, eu nem os conhecia. Vou chamá-los de o pai, a mãe, o filho e a filha...


- Não sabe os nomes deles?


- Não. Eles tinham uma empregada...


- Deviam ser ricos, pobres não tem empregada.


- Na verdade, eram de classe média, essa empregada era só uma mulher que chegara do nordeste e trabalhava para eles em troca de um mísero salário, porque não tinha nada nem ninguém em São Paulo...


- Entendo.


- O filho tinha dez anos e a filha oito. Havia na vizinhança um garoto, também de dez anos, que era amigo deles...


- Sabe o nome dele?


- Também não. Esse amigo visitava os filhos todas as tardes, para brincarem. Os pais gostavam dele, achavam-no uma boa companhia para suas crianças...


- E era?


- Não sei.


A bebida acaba. Param a conversa, pedem outra garrafa, enchem os copos e continuam.


- O que mais acontece nessa história?


- O amigo era esperto e malicioso, como a maioria dos moleques nessa idade, já tinha noção da existência do sexo...


- E quanto aos irmãos?


- Eles não, eram ingênuos devido à educação recebida de seus pais. Um dia, à tarde, o amigo foi visitá-los, para brincar com o irmão, mas somente a irmã estava na casa. Aproveitando-se da situação, convidou-a para brincar de médico...


- Essa história é antiga.


- Não me interrompa mais, por favor!


- Perdão. Prossiga.


- Os dois foram a um terreno cheio de matos que havia atrás da casa da família. Lá, sob uma mangueira, o amigo estabeleceu as regras da brincadeira. Ele seria o médico e a garotinha seria a paciente...


- Eu sabia! Oh, desculpe, continue.


- Sem saber por que, a menina, ingênua, deixou que o amigo a despisse e tocasse-a em todo o corpo, e tomada por uma sensação desconhecida, gostou disso. Depois, como paciente que segue à risca as prescrições médicas, deitou-se de bruços a pedido do doutor. Naquela época, embora soubesse que as pessoas faziam sexo, o amigo não sabia bem o que fazer tampouco a menina. Eram virgens, então os dois ficaram apenas abraçados e se deleitando com o contato dos corpos, achando aquilo maravilhoso. Ela sentia-se derreter e ele, por sua vez, parecia que explodiria a qualquer momento, mas não foram além...


- Como pode?


- Sei lá, eram crianças.


- Ficaram só nisso?


- Sim, pois instintivamente, a irmã empurra o amigo, veste-se apressadamente e vai embora, chorando. O garoto permanece no local por mais alguns minutos até que se dá conta de que está nu. Veste-se e no momento que ia para casa, ele sente como se o olho de Deus estivesse esmagando-o.


- Por quê?


- Tenha paciência.


Mais uma garrafa de cerveja. Vão ao banheiro, voltam e o narrador continua.


- Ao olhar para a casa da família, uma visão pavorosa o paralisa. O pai, com um olhar que incendiaria qualquer coisa, estava em cima da laje olhando para ele. A expressão do homem era medonha. Os dois se encararam por um instante, o amigo sentiu um calafrio e suas pernas começaram a tremer...


- Que situação!


- Tremendo de medo, o garoto vai-se, trôpego. O pai apenas segue-o, com os olhos em chamas...


- O pai não fez nada?


- Não...


- Estranho.


- O pior veio depois. Após alguns dias com medo, sem ir à casa da família, o amigo resolveu arriscar uma visita. O pai não fez nada nem falou coisa alguma, continuou tratando-lhe bem, como sempre tratou...


- Talvez ele não tenha visto a brincadeira das crianças.


- Talvez. Tudo parecia normal, mas numa tarde, a empregada entra na história...


- O que ela tem a ver com isso?


- Era o que o amigo se perguntou quando ele apertou a campainha e a mulher apareceu e o chamou para uma conversa em seu quarto...


- Mas que tarada!


- Não é o que você está pensando...


- Ah, sim!


- No quarto, ela o encostou na parede, interrogando-o a respeito de seu relacionamento com a menina, tendo a certeza de que os dois eram namorados...


- E eram?


- Não. Depois daquele acontecimento no terreno, o moleque não ousou mais nada, tinha pavor do pai dela...


- Também deveras.


- E assim foi durante muito tempo, a empregada interrogando o amigo, e o garoto negando sempre. “Confessa, safado, confessa”, dizia ela, e, às vezes, percebendo que ele não falaria nada: “Eu já sei, não adianta tentar esconder”, esbravejava nervosa por não arrancar nenhuma informação da boca do menino...


- Ele teve muita frieza.


- Por favor, deixe-me terminar a história!


- Desculpe, continue.


- Por sorte, a família se mudou para outra cidade, então a tortura acabou. Aos dez anos de idade, mesmo sendo esperto, sua percepção das coisas ainda era infantil. Ele não entendia porque a empregada o acusava como se soubesse de todos os detalhes da brincadeira daquela tarde. Só alguns anos mais tarde, em sua vida adulta, quando teve sua primeira relação sexual de verdade, lembrou da oportunidade que teve na infância com a filha daquela família. Ao lembrar-se disso, um clarão lhe veio à mente como uma vela que é acesa num quarto escuro...


- Não entendi.


- Não?


- Explique-me, por favor. Estou curioso.


- Só havia uma maneira de a empregada saber de tudo. Para isso, ela precisava ter intimidade com o pai, isso até que não é estranho, há muitos patrões que conversam com seus empregados. Mas por que o pai contou à empregada e não à mãe?


- Por quê?


- Só há uma resposta...


- Qual?


- Os dois eram amantes.


- Faz sentido, mas não acho que isso seria motivo para o pai não deixar a mãe a par da situação.


- Você ainda não entendeu...


- Creio que não, agora a história está confusa.


- O pai era tão errado quanto o amigo, os dois eram movidos pelos impulsos sexuais. Querendo ou não, o homem compreendia o garoto, por isso não se sentia correto a ponto de falar com ele.

- Quem te contou essa história?

- Um amigo.



A história termina e a cerveja também. Os dois levantam-se, pagam a conta e vão embora, cada um no seu caminho. O narrador segue tranquilo. O ouvinte vai pensativo.

Flávio Soares

2 comentários:

Thiago Almeida disse...

Meu! Que é isso!?
Que texto sensacional.

Quando vi que você tinha postado, antes de ler, pensei: - Vou falar para o Flavio não demorar muito pra postar, pois faz tempo que ele não postava".
Mas, depois de ler este conto, darei este crédito. Se demorar pra postar e vir com textos como este, tá perdoado pela demora! rs

Meus parabens, cara.
Abraços!

Juba disse...

porra!!! to até atordoado! essa estoria me deu arrepios e nostalgia!!!
essa foi foda em!!!