quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

No tempo de uma fumada


Ele já tinha lido vários contratos e documentos naquela tarde. As cláusulas com letras miúdas feriram-lhe a vista. Seus olhos pesavam. Sua cabeça doía. Acendeu um cigarro. Foi à janela. Uma, duas, três tragadas. Entrou em meditação.


Na rua, uma senhora passeava com seu cão. Moleques jogavam futebol. Jovens casais transitavam. Um vagabundo dormia profundamente no banco da praça. Pássaros cantavam nos galhos duma árvore. Um velhinho sentado ao portão de uma casa assobiava, sossegado. Uma mulher varrendo a calçada cantarolava uma canção de Caetano Veloso. Uma loira de olhar azul celeste passou embaixo da janela, foi a melhor visão que teve. Quanta tranquilidade. Fora do escritório, longe da papelada, a vida parecia em paz.


Virou-se para a mesa bagunçada. Uma pilha de papéis o aguardava. Acendeu outro cigarro.

Flávio Soares

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Uma perturbação

Todos os problemas do mundo são causados pelo homem, era o que Evandro dizia a si mesmo naquela fria manhã de junho. Há tempos refletia sobre a vida. Sua única conclusão foi de que não existe mal maior que o ser humano. Tendo achado o problema, bastava aniquilá-lo.

Sendo o único morador de uma casa com cinco cômodos, em uma rua num lugar distante, quase desabitado, sentia-se feliz, solitário. Tinha aprendido a não conviver com ninguém. Sexo, abstera-se disso. Sem pessoas, sem confusão, esse era seu lema. Porteiro de um prédio no centro da cidade precisava sorrir aos moradores toda vez que os via, mas isso era demais, ele odiava a humanidade. Como ser amável com eles, se perguntava. Passavam por ele: Bom-dia, Vandão! – assim o chamavam – e o coitado, em sua luta interior, forçando um sorriso, respondia com alegria fingida. Às vezes, depois do serviço, quando a noite apagava o dia, debruçado na janela de seu quarto a observar as estrelas, ele sonhava com uma bomba atômica caindo sobre o planeta, exterminando-o. Seria maravilhoso, falava em suspiros.


Ao acordar naquele dia de inverno, uma idéia lhe perturbava. Levantou-se do leito e não o arrumou como de costume. Preparou café e bolo de fubá, sua refeição predileta. Pôs a mesa. Sentou-se na cadeira da ponta e serviu-se. As outras cadeiras, vazias, o olhavam com tristeza. Depois, de barriga cheia, murmurou uma reza que ecoou por todos os cantos da casa. Vestiu um sobretudo preto, colocou uma toca na cabeça, pegou sua arma na gaveta e partiu em marcha fúnebre.


Em frente à escola, um sujeito espreitava. Muitas mães aguardavam seus filhos. Quem é ele, e o que quer, indagavam. Soou o sinal da saída. As crianças apareceram sorrindo no portão. Um homem, empunhando um revólver, precipita-se na direção delas. Desespero. Gritaria. O sujeito, numa atitude inexplicável, atira nove vezes para o alto e se afasta, chorando.

Flávio Soares

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Coisas do Brasil

Certa vez, no centro da cidade de São Paulo, num ponto de ônibus, alguns jovens estudantes de Engenharia, Direito e Administração conversavam alegremente. Enquanto esperavam a condução que os levaria ao destino desejado, discutiam assuntos de mídia. De repente, um senhor com aparência interiorana, trajando vestes incomuns nos centros urbanos, para próximo a eles.

— Olhem para este sujeito. – falou um engravatado – Parece um personagem do Ariano Suassuna.


Todos gargalharam descontroladamente, afinal, o figurino do homem era o de um cangaceiro, coisa que paulistas seguidores da moda estrangeira, estão desacostumados a ver. Então um dos jovens dirigiu-se ao senhor — esse que não estava entendendo o motivo de tanto riso — e com um tom de voz zombador:


— O senhor é da roça?


Novamente houve uma seqüência de gargalhadas que ridicularizaram o coitado. O homem franziu a testa e fitou a todos com um olhar vazio de quem já era habituado àquilo e, ajeitando o chapéu de couro que lembrava Virgulino, deu as costas aos jovens que não paravam de lhe zombar, mas antes de sair disse:


— Você fala da roça de onde sai o feijão que você come? Ela que é minha!


Os arrogantes universitários pasmados e boquiabertos diante de tal resposta, entreolharam-se atonitamente, mas nada falaram. Um deles ainda pensou em retrucar, não achou palavras.

Flávio Soares