domingo, 30 de novembro de 2008

Numa hora qualquer

Sentado num banco de praça
o tempo fuça em sua ampulheta
como um menino
que desmonta e remonta um brinquedo.
Tudo acontece sem significado
os minutos se revezam
numa monotonia mortal.

O tédio
é deprimente.

Flávio Soares

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Viagem delirante

Um poeta se perdeu na paisagem
de um romance épico que lia
galopava pelos prados
ao som da natureza
pensava ser um cavaleiro
a serviço d'el rei.
Como numa bruxaria
as palavras o enfeitiçaram
folheava o livro
feito quem dedilha uma lira
e a história tornou-se seu calabouço.

Na torre do castelo havia uma princesa
de lábios intocados
a entoar cantigas medievais
tal qual o trovador apaixonado
num platonismo angustiante
o homem poetizava
a cada capítulo lido.

Ficava a virgem cantando ao vento
esperando por um príncipe
que nunca vinha
sua voz lamuriosa
hipnotizou o leitor enamorado
como um timbre de sereia.

De tanto esperar ficou demente
e seu canto tão melancólico
que o leitor se abateu.
Ela definhava
a vida dele minava em lágrimas
ela se atirou da torre
ele sentiu-a pular do livro.
Não havia mais páginas para virar
só a contracapa em branco
onde escreveu um poema
no qual morria ao lado dela.

Morre a donzela de tristeza
morre o poeta fundido à história.

Flávio Soares

Poema vencedor do V concurso de poesia realizado na Universidade do Grande ABC em novembro de 2008.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Efeito de alienação

Capítulo 2


A modernidade é impressionante. Há anos não pisava em Mauá, de repente em pouco mais de três horas, fui até lá, conversei com Dona Estela e voltei pra casa, graças a uma coisa chamada carro a motor. Se fosse no século dezenove, eu demoraria dias para fazer essa viagem a cavalo. Poderia ter visitado Ricardo, mas não me lembrei disso enquanto estava lá, nem reparei na cidade, pois abalado, a única coisa que queria era conferir a notícia do falecimento de meu amigo.

Entrei em casa correndo e liguei a câmera. Continuei de onde havia parado quando a desliguei. Elder começou a falar:
“Meu nome é Elder, e devido ao meu fanatismo pelo rock’n’roll todos que me conhecem me chamam de Elder Presley. Desde minha adolescência sempre sonhei em ser um rock star. Me envolvi demais com o movimento rockeiro. Tive até uma banda que acabou quando meu amigo Jonas resolveu ser responsável e se mudou para São Paulo a fim de estudar e trabalhar. Ainda me lembro das roconhas que fazíamos nos velhos tempos, éramos loucos.”

Ele parou de falar por uns minutos para tragar seu baseado. Fumou tudo numa tragada só. Depois virou a garrafa de conhaque e se levantou. Foi até a cômoda e pegou algo na gaveta. Era cocaína. Espalhou num prato e cheirou uma quantidade mortal. Daí abriu outro conhaque e continuou a falar, já com voz mole e de um jeito quase intraduzível:
“Meus amigos sempre me diziam para tomar cuidado senão eu acabaria como meus ídolos, morto com uma overdose. Nunca liguei pra isso, porque apesar de tudo sempre me cuidei, pois pretendia viver bastante. Eu pedia para não se preocuparem comigo que aquilo nunca aconteceria, até que conheci Raquel...”

De repente, deitou-se na cama. Pronunciou mais algumas palavras que não pude entender e uma convulsão o atacou. Foi horrível assistir aquilo. Durou cerca de cinco minutos. Depois seu corpo ficou paralisado por uns instantes. Pensei que tinha morrido, mas ainda pronunciou: “Raquel... Raquel... Raquel...”. A gravação continua por mais quinze minutos. E durante esse tempo ele não se mexe. Foi-se.

Fiquei chocado. Ele não morreu de overdose, se suicidou com uma overdose. Pensei um pouco. Conclui que não seria bom contar a respeito dessa gravação pra ninguém, principalmente para Dona Estela. Mas decidi que descobriria por que ele fez isso. E naquele momento uma pergunta me perturbava. Quem era Raquel? Resolvi descobrir. Parecia ser o motivo de tudo. Senti que voltaria a Mauá.

Flávio Soares

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O velho

Lá vai um quase-século na estrada
carregando o acúmulo
de uma existência
mais atrás
a espreitar-lhe
segue-o a morte
com a negra túnica roçando o chão
amolando sua foice.

Flávio Soares