quarta-feira, 27 de maio de 2015

Drummond, o gauche reflexivo



Carlos Drummond de Andrade é indubitavelmente um dos maiores escritores brasileiros. Na opinião de muitos, o mineiro de Itabira foi o maior poeta brasileiro do século XX e, também, o mais influente de todos. 

Abaixo, uma de suas obras-primas. 


Caso pluvioso

A chuva me irritava. Até que um dia
descobri que Maria é que chovia.
A chuva era Maria. E cada pingo
de Maria ensopava meu domingo.

E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.
Eu era todo barro, sem verdura...
Maria, chuvosíssima criatura!

Ela chovia em mim, em cada gesto,
pensamento, desejo, sono e o resto.
Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa... Nossa!

Não me chovas, Maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.
Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!

Eu lhe dizia em vão - pois que Maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.
E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,

que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.
Chuvadeira Maria, chuvadonha
chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!

Eu lhe gritava: Para! e ela chovendo,
poças d'água gelada ia tecendo.
Choveu tanto Maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa.

e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.
E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de Maria mais chuvavam,

de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,
e eis o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvido.

Os seres mais estranhos se juntando
na mesma aquosa pasta iam clamando
contra essa chuva estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).

Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas d'água mais deliram,
e Maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.

Os navios soçobram. Continentes,
já submergem com todos os viventes,
e Maria chovendo. Eis que a essa altura,
delida e fluida a humana enfibratura,

e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,
e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, Maria! - e ela parou.












sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Sam Shepard, o poeta do Velho Oeste






Sam Shepard está entre os dramaturgos mais aclamados dos Estados Unidos. Escreveu cerca de cinquenta peças e teve seu trabalho produzido por todo o país. Ele também atingiu a fama como ator, escritor e diretor de filmes. Dentre seus mais famosos livros, estão Crônicas de motel, Cruzando o paraíso e O grande sonho do céu.



Abaixo, alguns poemas do livro Crônicas de motel.



Double roses
ela diz
como na Inglaterra
como lá na Inglaterra

E se deita para trás
dentro de si mesma
dentro da Inglaterra

Sua narina se dilata
seus olhos se fecham
a Rosa a leva de volta para casa

22/09/1980
San Francisco, California


Esta noite
estão molhando o cemitério em Cody, Wyoming
um vento seco sopra pelas barracas do rodeio
o hino nacional flutua na pradaria
cantando sem convicção
cantando por convenção

Aqui, há um touro chamado "Boca de algodão" que jamais foi montado
o anunciador irradia o velho provérbio
"Nunca existiu touro que não possa ser montado
nunca existiu cowboy que não possa ser derrubado"

Um vento forte sopra das montanhas rochosas
Através da trilha da montanha Absoraka
a noite engole todo o Wyoming
a noite nos mantém sob as luzes.

06/08/1980
Cody, Wyoming


Seus canários
estavam sucumbindo como moscas
todas as manhãs
havia outro
duro
no fundo da gaiola

O veterinário disse
que era devido a bactérias
na água que estavam bebendo
mas ele próprio sabia
que era
pela maneira como estamos vivendo

02/08/1981
Homestead Valley, California